segunda-feira, dezembro 25, 2006


Olhos em forma de seta..que trespassa, imagens e palavras escritas ao alto e talvez algumas deitadas...foram algumas, não tantas como as que eu queria..mas foram as minhas palavras, doces e amargas, minhas, do meu dentro mais dentro. Do dentro que só eu sei conhecer, e só eu sei ver o seu significado tal qual como ele é...
Talvez ninguém vá ler estas palavras, mas necessitava de as escrever para dizer a este meu cantinho, que vou partir, e vou acabar a minha escrita por aqui..aqui irei acabar, mas continua noutro cantinho: www.noirpourpre.blogspot.com
Sei que deveria ter feito isto antes, mas a minha inércia foi maior, e a minha vontade de publicar um texto deste calibre foi pouca...Assim termino. Não apago o meu cantinho..nunca irei..fica aqui, sempre..para que um dia volte e me leia novamente, para que um dia volte e fique feliz por não o ter apagado, ou então para voltar a escrevê-lo e dar-lhe vida...

sexta-feira, março 17, 2006

Ela

Observo-a a dançar. Pequena e frágil, por entre o vestido branco e suave, que lhe cai pelo corpo. Os braços são levados por uma pequena brisa que corre, parece que escorrem no ar. Ao fundo a melodia de um piano, que toca desorientado, procurando as notas. As teclas batem sem nexo, mas ela faz da música algo compreensível. Faz da dor do piano sua dor, e faz da minha dor algo tão estulto. E ela sabe que me faz sentir assim, por a observar. Tão longe, mas quase que consigo sentir o seu respirar ofegante do esforço dos movimentos certos e delicados. Quase que consigo sentir o seu coração pulsar o sangue que chega às suas longas pernas, aos seus braços pequenos que me tocam sem saber. Bela ela. Bela dança.
Nas mãos seguro o punhal, decidi matar o meu amor hoje. É que embora sinta o amor, não tenho, não quero e não posso dar amor a ninguém. Sou um animal estranho, que se esconde no ódio para encontrar a salvação, e por isso vou matar o amor de uma vez por todas. Sim. Não tenho, não quero e não posso dar amor a ninguém, porque o amor existe em mim em poucas quantidades, e se te oferecer a ti, posso começar a odiar-me a mim. Perdoa-me meu amor, mas tenho de te matar. Sou eu, ou tu. E eu escolhi-me a mim, porque eu sou eu., porque eu me pertenço e tu danças e escapas-me por entre esse vestido fugidio.
Levanto-me. Seguro o punhal. Vejo os teus olhos seguir o meu movimento. Sorris para mim, chamas-me com a tua mão, pedes-me para dançar contigo. Eu estendo-te a minha mão trémula, e sinto o meu amor soltar-se todo para ti. Tu escorregas no meu amor liberto, a minha mão estende-se para te agarrar. Mas, o punhal! A mão que te ia segurar o ventre, segurava o punhal…o punhal…o punhal atravessou a tua pele, os teus músculos e o sangue saiu, vermelho como o meu amor…O punhal e o meu amor, o punhal e teu sangue, meu amor! Caíste de vez…com um baque mudo e seco. O teu vestido branco feito de nuvens, vermelho…a tua pureza desfeita no sangue, o teu ventre cortado, o vestido da cor dos teus lábios, e os teus lábios, antes vermelhos, da cor do vestido…Desgraçado punhal! Desgraçado amor! Desgraçado eu! Queria matar o meu amor, e agora que o queria dar, o meu amor matou-se...
Seguro-te nas minhas mãos, e coloco um beijo morto nos teus lábios, uma última réstia do meu amor… Ofereci-te o meu amor e morreste-me, agora só tenho ódio em mim…O piano ainda continua a tocar sozinho, o escuro instalou-se aqui neste lugar, e eu sou a escuridão completa. Procuro pelo som o piano, e encontro-o não muito longe de ti. Tento ser compositor e compor uma música para ti. Encontro as notas, e sei fazer melodia, mas tu já não danças amor…morreste-me, e eu morro…


segunda-feira, fevereiro 20, 2006

O rio dos sonhos

O rio corria bem devagar, por entre curvas e sonhos ele corria. Azul, amarelo, branco, roxo, verde…os sonhos misturavam-se formando o arco-íris na superfície do rio. Os sonhos voavam por entre nuvens de formas desiguais, por entre o ar esquecido que atravessava aquele sítio. Sitio dos sonhos, diziam, com o rio dos sonhos. Os sonhos voavam e deixavam-se deslizar por um fio, para as águas calmas. Sonhos multicolores desciam sem serem reparados, mergulhando e deixando as águas cada vez mais pintadas.
Ele passava horas contemplando o rio, esperando pelo momento em que os seus sairiam das águas e se fizessem notar…Mas nada, tudo continuava tão quedo e mudo, desde que ele chegara. Apenas o barulhinho dos sonhos inquietos por saírem, apenas aquele barulhinho mesmo aos seus pés… parecendo quase tocá-lo, mas no fundo tão longe. Tão longe, porque os sonhos estavam mesmo no fundo, sobre uma película de vidro inquebrável…ninguém chegava lá.
Quando a noite chegava, ele recolhia o seu fio de pensamento, e levava-o até a sua casa, perto do rio dos sonhos. Por vezes, despertava do seu sono, com sonhos a pairar sobre a sua cabeça…levantava-se­­ e caminhava um pouco, caminhava e deitava-se junto da relva do rio, esperando, esperando…De cabeça voltada para um fundo azul escuro, voltava a desenrolar o seu fio de pensamento, e os seus sonhos. Os pontinhos luminosos diziam-lhe coisas ao ouvido, coisas que fazem chorar. Diziam que ele nunca iria ver um único sonho dele sair por a frincha do vidro…Diziam-lhe coisas ao ouvido, e ele pensava ouvir, mas não ouvia… Deixava-se estar um pouco mais sobre a relva, mesmo com pequenas gotas de água que caiam sobre si, mesmo com o vento que arranhava a pele e fazia os olhos chorar. E ele chorava, por causa da água que lhe caía, por causa do vento que lhe soprava nos olhos, por causa da película de vidro, por causa do fundo do rio, não dos sonhos, mas sim dos seus sonhos perdidos…
Acabava por adormecer na relva fria e húmida, e as pessoas chamavam-no louco. Louco por achar que estar ali condicionaria o desejo das águas…Louco, sussurravam, louco, gritavam, louco diziam as pessoas tal como os pontinhos do céu lhe diziam. Mas ele não ouvia, ou não queria ouvir…Continuou de pé firme, esperando, esperando, esperando…Quando todos se esqueciam dos seus sonhos, quando a maior parte desistia de sonhar, ele ali estava cada vez mais sonhador…
As manhãs, as tardes e as noites repetiam-se num constante esperar…Pensou desistir, esquecer como todos lhe diziam…mas numa dessas noites, em que se achava deitado na relva, sonhou…sonhou mais um pouco, e mais, e mais, e mais, e ainda mais, e ainda mais que o mais do ainda mais. Sonhos de uma vida, acumulados no extenso fio do seu pensar…Fio de pensamento que tinha linha, como novelos de lã, que se entrelaçavam uns com os outros e davam um gigante novelo de lã…assim era o seu fio de pensamento, e os seus sonhos cobriram-no todo, formando uma grande bola de sonhos…A bola flutuava pesada no ar, pisando as nuvens, pisando o ar com o seu monstruoso peso…O ruído não era leve, como os outro sonhos, era um rolar intenso, uma melodia desesperada de esperança e desejos…A bola pesava cada vez mais para o rio, cada vez mais, até que tocou na fina película, que cedeu um pouco…os sonhos não paravam de chegar, enaltecendo a grandiosidade da bola de sonhos. Estalidos, e fendas cada vez maiores a bola tentava encontrar os outros sonhos perdidos…Mais e mais sonhos, mais e mais estalidos e fendas…Estrondo…Vidros partidos, que voaram em todas as direcções, vidros que tocaram os pontinhos luminosos e os fizeram encolher…Pedacinhos de vidros que choviam por entre as cores dos sonhos que saiam velozes com o vento, que se espalhavam como setas que cortavam o ar, e se faziam notar, rasgando a vida do sonhador que sonhou…Sonhos tão belos e coloridos, só daqueles que fazem sorrir, fechar os olhos e abrir muito os braços. Só daqueles que fazem sorrir pela boca, pelos olhos, pelo nariz, pelas orelhas, pelos dedos…Só daqueles que nos fazem girar, e depois cair com gargalhadas…Só daqueles que sonhamos e procuramos como se fosse um tesouro muito grande…
E os sonhos fugiam, escapavam das águas do rio dos sonhos…e ele saltava vendo os seus sonhos colorir o céu, tornado-o tão belo e tão feliz…
Os sonhos escapavam e ele ria muito alto, saltando por entre a relva que esperou com ele por aquele momento. Os sonhos pintavam tudo, e as pessoas acordavam e também riam com ele, rodopiavam com ele, rolavam pela relva, cantavam, saltavam, gritavam sem saber porquê…Só sabiam que estavam felizes, e havia cor, e não havia mais rio que prendia sonhos…
Podiam colorir o mundo com sonhos bonitos, podiam pintar sorrisos, podiam sonhar...

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Amor

A escuridão ocupava cada canto do quarto.
O corpo estava quieto e adormecido por entre lençóis cheios de frio. As pernas encolhidas, e o cabelo disperso que beijava cada pedaço de almofada. Passos. Pequenos passos. Pequenos passos de veludo pisavam o escuro do quarto. Pisavam cada molécula de oxigénio, como se houvesse um céu por baixo deles. Pisavam cada partícula de silêncio esquecido, como se fosse houvesse um túmulo por baixo deles.
O corpo continuava quieto, esperando os passos sem saber, esperando uma voz sem pensar.
- Amor. - O som percorreu o ar, deslizou suavemente entre o escuro, e deixou-se cair nos cabelos negros. Passeou-se neles, deixando-se demorar, e foi entrando devagarinho no ouvido…o tímpano vibrou mansamente, mas o corpo não ouviu. Os passos percorreram mais um pouco o quarto e pousaram mesmo em frente da figura estendida. A escuridão esqueceu os passos e concentrou-se no leve deslocar de um rosto, e no timbre de um pousar de lábios num ouvido.
- Amor… - a voz soou ainda mais doce, ainda mais bela, e o som apenas se desapertou dos lábios, para cair directamente no ouvido. O corpo ouviu. O corpo acordou. O corpo abriu os olhos e encontrou escuro sobre escuro, e um olhar fixo na sua fragilidade descoberta.
- Quem está aí? - Disse o corpo num murmúrio.
- Sou eu amor, o amor…
- Amor? Quem é o amor?
- Ninguém, nada, tudo…sou tudo e sou nada… - Ouviu-se um riso triste que desvaneceu logo de seguida.
O corpo procurou a voz na escuridão. Tocou no vazio durante algum tempo e depois encontrou uns lábios…mais acima um nariz…umas pálpebras…as pestanas fechadas. Tocou a pele, sentiu a sua textura, o seu cheiro.
- Amor… - concordou o corpo - Sim és tu, meu amor…
Os lábios tocaram-se, mergulharam no dentro de cada um, guardaram palavras do fundo…esperaram…soltaram amarras e os fundos prenderam-se.
Amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor, amor…repetiam os dois corpos em uníssono,como se a palavra fosse acabar e deixar de existir. As palavras lançadas de ambos os corpos chocavam uma na outra…as letras saltavam de cada palavra e enlaçavam-se…o A com o R, o M com O, o O com o M e o R com o A. As letras caíam com ruído no escuro. Chocavam, enlaçavam-se e caíam. Chocam, enlaçavam-se e caíam.
Os olhos abriram-se e percorreram de novo o escuro, as mãos procuraram algo consistente, mas só agarraram partículas de ar e silêncio. O som já não se deixava cair nos ouvidos do corpo. Agora, o corpo só ouvia apenas o sussurrar dos seus movimentos, o sussurrar dos seus pensamentos velozes. Nenhum som para além do seu…
Silêncio. E o silêncio cobrira um espaço maior que o escuro. Nada, vazio… Tudo igual, como se o corpo voltasse atrás…Pousou os pés no chão, sentiu as letras mortas por baixo dos pés, sentiu o frio das letras que corroíam os seus dedos…Procurou mais um pouco…letras esquecidas no escuro, suspensas no nada do silêncio…
Ninguém, nada, tudo… Amor? Amor?... Ninguém, nada, tudo…

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Pedacinhos de trapos ( I Parte)

O relógio da sala anunciava as quatro horas. O seu pêndulo brilhante produzia um sonoro tique - taque, mas para nada o acordava. Uma profunda sonolência tinha-se instalado no seu corpo, começando primeiro pelos olhos, causando-lhe um peso profundo, e depois alastrando-se pelos braços, pelas pernas, pelo tronco… Deixou-se cair no sofá, e ali ficara. A sonolência era tamanha, que nem ouviu o leve tocar dos pés feitos do mais belo tecido azul… nem ouviu o leve roçar de braços feitos do mais fino algodão e cobertos por um tecido bege grosso… nem ouviu o leve ondular dos cabelos castanhos feitos da mais resistente lã… nem ouviu o leve olhar que o percorria, feito com os mais engraçados botões. Pé ante pé, os olhitos percorriam a sala, com uma nuvem pairando, num misto de curiosidade e interesse que tocavam os cabelitos de lã.
De repente, a sonolência abandonou o corpo dele, e lentamente ele começou a ouvir os passos, o roçar de braços, o ondular de cabelos… e sentiu um olhar pousado na sua direcção. Abriu os olhos cautelosamente, e… encontrou dois botõezinhos muito azuis a olhar fixamente nos seus olhos. Voltou a fechar os olhos, abriu, pestanejou repetidamente. Esfregou os olhos, e abriu-os de novo… Uma bonequita de trapos apareceu no seu campo de visão, uma bonequita de trapos com um vestido feito de vários tecidos multicolores, boca feita de tecido, nariz feito de tecido, olhos de botões, cabelo de lã envolto numa enorme rodilha de tecido, formando um chapéu. Ergueu-se lentamente, fitou-a durante um pouco, e sentou-se no chão desamparado.
Levantou-se um silêncio, seguido de várias interrogações.
- Quem és? - começou ele, levantando o sobrolho.
- Sou uma boneca de trapos… - ouviu-se uma voz macia, como o próprio tecido de que era feita. A voz amaciou o ar e desvaneceu-se.
Pensando que os seus olhos o atraiçoavam, e a sua imaginação se estendia um pouco mais que o habitual, levantou-se, sorriu para consigo mesmo, e foi à cozinha beber um pouco de água. Mas logo sentiu dois pezitos seguirem os seus, e voltou-se encarando a estranha figura.
-Ora, será que não és capaz de acreditar em mim e aceitar-me? - resmungou ela - Começo a ficar um pouco aborrecida de andar atrás de ti por toda a casa.
Sim, de facto já a vira algumas vezes no quarto de costura da sua mãe, mas pensou que… nem sabia o que havia pensado… às vezes as sombras enganavam… Mas aquela voz parecia-lhe demasiado cansada e triste, e por isso resolveu aceitar a sua visão…
- Mas afinal, o que fazes em minha casa? - perguntou ele indignado.
- Bem… o tecido das minhas pernas descoseu-se e o meu vestido rasgou-se. Então soube que a tua mãe era costureira, e depois de encontrar o seu quarto de costura consegui coser-me… - o seu rápido discurso foi interrompido por ele.
- Mas afinal, quem és tu? De onde vieste? O que tenho eu a ver com as pernas e vestido descosidos? Porque não te costuraste e te foste embora? Porque falas tu comigo? Porque teimam os meus olhos em ver coisas que não são reais?
- Ora bem… eu sou uma boneca de trapos, de onde vim não importa, tens a ver com o meu “ descosimento”, porque a tua mãe é costureira, não me fui embora porque ainda tenho umas coisas a tratar, e falo contigo, porque te acho um ser curioso, e os teus olhos não te enganam… porque teimas tu, em te fechar no teu mundo feito de realidade? Porque não deixas a tua mente explorar o improvável? - mais uma vez o discurso rápido alargou-se no ar, e o tom doce e ao mesmo tempo autoritário e decidido, convenceu-o. Aceitaria falar com uma boneca de trapos…iria ceder à sua própria loucura…Mas havia de facto uma pontinha de curiosidade e simpatia por aquela bonequita tão engraçada. Cedeu-lhe o quarto de costura da mãe para terminar o seu arranjo, e deitou-se a observar. As hábeis mãos de pano costuravam o vestido, colocando aqui e além, mais um toque de graça. Ela reparou que ele a observava, e lançou-lhe um aberto sorriso, mostrando os seus dentes feitos de um tecido muito branco.
- Então sempre acreditas nos teus olhos? - disse ela cortando a linha com as mãos.
- Tento acreditar…
- Porque é tão difícil aceitar que…
- É difícil aceitar, porque nunca vi nada igual…
- O medo da diferença, o medo, sempre o medo… eu posso ser diferente de ti em alguns aspectos, mas no fundo, sou igual, ando, falo, penso, sinto…
Os ouvidos de pano esperaram uma resposta mas não a obtiveram. Ele ficou mudo, o ar silencioso, e a boneca sentou-se no chão mesmo ao lado dele…
- Obrigada pelas linhas e tecidos…vou-me embora…
- Espera… - disse ele - não vás ainda… ou melhor… podes voltar amanhã para falarmos um pouco mais?
Ele próprio se surpreendeu com as suas próprias palavras. Ela sorriu, mostrando novamente os dentes brancos de pano, e ele quase jurou ter visto um brilhozinho nos olhinhos-botões.
- Se assim o queres, eu volto… Gostarei de falar contigo mais uma vez.

Pedacinhos de trapos ( II Parte)

O resto do dia passou. Ao fim da tarde, a mãe dele chegou da feira de tecidos, e perguntou o que havia acontecido no seu quarto de costura. Linha, tecidos espalhados pelo chão… tudo muito desarrumado e suspeito… ali havia asneira pela certa! Ele encolheu os ombros e foi para o seu quarto. Pegou numa folha branca, em alguns lápis e começou a desenhar o que a memória lhe trouxe… tecidos, linhas, botões e lã, foram aparecendo no papel.
No dia seguinte, quando o relógio marcou as quatro horas da tarde, e o som das badaladas entoou pela sala, ele sentou-se muito direito, com o olhar preso na porta… De novo os pés de tecido apareceram, os cabelos ondularam e os seus olhos voltaram a encontrar os dele. Sentado no chão da salinha de costura, ele ofereceu-lhe o seu desenho, e ela ofereceu-lhe o seu sorriso dançando por entre tecido e costuras. Falaram toda a tarde, de tudo ou quase tudo.
À tardinha, ela despediu-se e ele pediu-lhe para ela voltar novamente. Ela assim fez, voltou no dia seguinte, quando o relógio se preparava para assinalar as quatro horas. Os seus pés escorregaram vindos não se sabe de onde, para mais uma tarde de conversa.
Os dias seguiram-se, assim como as visitas e conversas. Depois de algum tempo passado, ele já nem se lembrava que ela era feita de tecido, porque ela era tão igual a ele. Em algumas conversas eles discutiam as suas ideias, mas no fim, as vozes amenizavam, e os dois aceitavam as ideias um do outro, como dois bons amigos o fazem.
Num dos muitos dias em que ela ia partir, o seu coração ficou apertado. Desejava que o relógio da sala marcasse novamente as quatro horas, para que a bonequita de trapos voltasse e conversassem mais uma vez. Mas não. Quem voltava, dentro em pouco era a sua mãe. Chegava sempre àquela hora, de tirar as medidas a uma cliente para um vestido, ou de comprar linhas e tecidos.
Nessa noite, ele sonhou com a boneca de trapos, sentada na salinha de costura, conversando para sempre com ele. Então, compreendeu o que lhe dizia o pensamento e os sonhos.
No dia seguinte, ao bater das quatro horas, ela apareceu, e pareceu-lhe ainda mais bonita. Nesse dia, a conversa não começou… o ar estava carregado de silêncio. Por cima da cabeça dele, apareciam balões de pensamentos cheios de palavras desorganizadas, que ele apagava com um abanar de cabeça… negando tudo, negando-se.
- O que se passa? - perguntou a sua voz dela.
- Nada… - disse ele mentindo. Mas quando disse isto, a voz faltou-lhe, e a resposta pareceu-lhe tão clara. Tudo se passava, tudo…
- Não me parece que assim seja. - disse ela sentando-se ao seu lado, chegando o seu corpo de pano, para o corpo dele.
- Bem… - começou ele - algo de estranho se passa… - disse ele por fim.
- Como assim? - perguntou ela, sem perceber.
- Ora… bom… eu…
Embrulhou as palavras na língua. Não dizia nada com sentido, mas por fim, decidiu-se.
- Eu… gosto de ti… - sussurrou.
A bonequita aproximou-se dele e disse baixinho:
- Eu também…
Pousou uma mão de pano na dele, e outra no seu cabelo encaracolado. E depois continuou:
- E isso é estranho porquê?
As leves meiguices acalmaram-no e então pôde falar com clareza.
- É estranho, porque és uma boneca de trapos, supostamente não és real…
As festas pararam, a mão dela separou-se da sua, e ouviu uma voz fraca responder:
- Pensei que tínhamos discutido isso… que importa se sou uma boneca de trapos? Se supostamente sou irreal? Também tu podes ser um boneco de trapos… também tu recolhes pedacinhos do que encontras… um bocadinho de amor, um bocadinho de amizade, um bocadinho de alegria…assim como eu recolho bocadinhos de tecido. Podemos sempre achar semelhanças entre todos nós, e aceitar as nossas diferenças, pelas nossas semelhanças. Somos iguais… o meu aspecto pode ser diferente, mas somos iguais. Agora que colhi um bocadinho do teu amor, fico triste, se o tornar a colocar onde o achei…
As pálpebras de tecido fecharam-se, largando pedacinhos de tecido transparente…
Ele reflectiu nas suas palavras, limpou-lhe as lágrimas de tecido e manteve o silêncio por algum tempo.
- Também eu te aceitei. - disse ela.
Ele pegou na mão de pano, puxou-a, levantou-a. Abriu a porta da salinha de costura, e partiram… Partiram para o sitio onde as diferenças não existem, para o sitio onde todos aceitam todos por igual…

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Estrela-do-mar

Era uma vez uma estrela do céu. O céu agarrava-a pelas suas cinco pontas, mantendo-a sempre fixa e imóvel, no seu canto azul-escuro. Do céu, ela via o mar, as ondas pequeninas que se formavam lá do fundo da sua visão, e que embatiam contra a areia. Via a espuma branca que se formava depois, naquela dança de grãos de areia com conchas, conchas com búzios, búzios com pedrinhas, formando mais e mais areia. Tão bela paisagem, mas tão cansativa. Ela queria ver coisas novas, queria ver o mar e a areia de perto, ver o céu lá de baixo, sentir o movimento, não ficar para sempre presa naquele seu céu escuro. Lá em baixo havia um mundo de cores à sua espera… os seus olhos ficavam já fartos de observar sempre o mesmo azul, sempre o mesmo branco da lua, sempre o mesmo dourado das suas companheiras… Lá em baixo não havia menos que meios dias, lá em baixo existia um dia, um dia completo para aparecer e viver para o universo em seu redor.
Numa bela noite, a estrela do céu decidiu forçar os fios que a prendiam. Puxou, puxou, e por fim, uma das cordas finas e transparentes quebrou, forçou outra, e quebrou, e mais outra e outra, e por fim a última das suas cinco pontas descolou do céu, partindo em dois a última corda. A estrela caiu desamparada pelo céu fora, deixando atrás de si um longo rasto dourado e brilhante… caiu no mar. O contacto com as ondas do mar foi súbito. Para uma estrela do céu, sempre quieta, o movimento do ondular das ondas foi um choque. Por cima das grandes vagas, que lá do alto lhe pareciam tão pequenas, ela tentava observar o céu…E lá o viu. Nunca o viu tão extenso e com tantos pontinhos brilhantes. Era belo. Desceu ao fundo do mar, sentiu a areia nas suas cinco pontas, tocou os peixes, conchas e búzios… Mergulhou no movimento, mergulhou para um universo, diferente… não havia nada igual, nada fixo… havia sim grande variedade de tudo, cheio de cor, cheio de diferenças.
A estrela do céu passou a ser a estrela-do-mar. Com a sua partida do céu, também algumas partiram do céu para o mar, à procura de um novo mundo. Poucas se conseguiram desprender das suas cordas transparentes… Talvez será essa a razão para a qual existe mais estrelas do céu do que estrelas-do-mar, e também será essa razão pela qual vemos tão poucas vezes estrelas cadentes…poucas têm coragem de se lançarem a um mundo desconhecido, poucos têm medo de deixar um brilho físico, para brilharem por dentro, para se sentirem plenos…Poucos têm força para contrariar os fios que as puxam…

domingo, janeiro 15, 2006

Chorar...

Ouço a chuva lá fora… Permaneço só, desfiando as palavras, palavras de mim para ti, só porque hoje é hoje, e hoje ouço o céu e ouvi-te desamarrar as cordas de água que resistiram por muito tempo…
Chora. Choremos os três. Só porque hoje é hoje, e hoje tudo aparece e se desfaz em bocadinhos monocromáticos que guardamos em nós… só porque hoje é hoje, e hoje as nuvens pairam e ficam em nós, despejando água e mais água…
Porque se despejam em nós? Ninguém tem culpa, de se quererem desprender da vossa água…temos água que chegue não nos venham atirar com mais em cima…
Choremos baixinho…choremos para dentro, já que sabemos que nos sabem…
“Também eu queria parar, chorar, cair para me levantar para te puxar…” Foi isso que fiz, parei e chorei por nós os três… por nós que choramos à espera de algo…sol talvez… tento puxar-nos, tento…quero conseguir…eu sei que consigo puxar-nos e sei que vocês também me vão puxar… Juntem os vossos olhos nos meus, eu choro por vocês…nem que os meus olhos se afoguem, nem que não reste mais nada em mim senão água…eu choro por vós… pelo menos sei que tentei fazer algo para afastar as nuvens, nem que forçosamente as tenha de pôr em cima de mim… Juntem as vossas mãos nas minhas, fechem os olhos, respirem comigo, em uníssono, longe mas perto, cada vez mais juntos e fortes, e altos, mais altos que as nuvens mais altos que a própria água que rebenta debaixo dos nossos pés…
Lá fora, o céu começa a sentir as minhas palavras, e por isso luta contra as nuvens que o preenchem… “ para te fazer sorrir não voltar a cair….” Não vamos voltar a cair, não vamos voltar a puxar-nos do fundo, vamos continuar a sorrir…porque hoje é hoje, e hoje o céu já não desamarra as cordas de água que ouvi…assim como espero que as tuas se não desamarrem neste momento…
O amanhã deste hoje, destes hojes, irá ser muito melhor…hoje choramos, porque as nuvens assim o quiseram, amanhã, as nuvens terão partido para outros céus… depois da grande tempestade, vem a calmaria…já diziam…coisa acertada…

Estou só eu aqui. Não há mais ninguém. Estou no alto do precipicio do mundo, onde nada consegue chegar. Isolada de tudo o que é terreno. Quase toco o céu, quase toco uma nuvem passageira, quase voo com os pássaros que aqui passam. Mas estou só no meio de tanto. Vejo um verde de perder vista. Vejo quase todo o mundo, mas estou só...
A brisa chega-me aos lábios, mas não me beija, o quente passa por mim, mas não me aquece, vejo sombras que não são minhas, vejo gente que não me toca. Ouço vozes que não me falam... aqui nada me chega, estou no alto do mundo, mas tão fraca, tão no fundo.
Toco em pedras que me rasgam os pés, tento agarrar lascas do que me pertence mas corto o que é meu. A pele engelhada, rasga-se em pedaços, o coração parte-se em bocadinhos...não consigo juntá-los...perdi-os rolaram encosta abaixo, só o céu sabe quem os agarrou, só o céu sabe quem os quererá colar, reconstruir pedacinho a pedacinho uma artéria, uma veia...só o céu sabe quem o aperta entre os braços e espera com toda a certeza que ele voltará a bater e bombear vida para mim.
Estou só eu aqui. Não há mais ninguém. Um chão duro é o que me apoia os pés, um chão duro que podia partir e atirar-me outra vez ao outro mundo. Um mundo em que todos pudessem cair e levantarem-se de seguida, sem nenhuma chaga…apenas a vontade de seguir em frente.