quarta-feira, outubro 26, 2005

Olhos de lua

Da janela viam-se os cabelos a ondular levemente com a brisa da noite. No parapeito, os seus braços tentavam agarrar a imagem para depois vê-la mais tarde na escuridão do seu sono. O sorriso fácil bailava na sua cara e os olhos, aqueles olhos que pareciam duas luas cheias, reflectiam duas luas pequeninas, semi-preenchidas e amarelas.
Quero ir à lua, pensava ela, mas não quero ir à lua dos astronautas, cheia de pegadas e bandeiras... quero ir a esta lua, que está aqui neste céu tão próximo de mim. Onde posso observar as luzes das cidades e as pessoas muito pequeninas. Fechou os olhos de lua cheia e concentrou-se no seu desejo. Pediu com muita força até se formarem pequenas rugas nos cantos dos olhos.
Abriu-os, pestanejou duas vezes.
À sua frente encontrava-se uma escada que ligava a sua janela à Lua. A escada era em caracol e podia ver-se flores a cobrir todo o corrimão. Flores vermelhas, amarelas, azuis, roxas, cor-de-rosa...
Abriu-se um sorriso tão largo que quase não cabia na sua cara. Abriu mais um pouco a janela, subiu ao parapeito e pousou o pé descalço no primeiro degrau. Subiu, subiu, subiu, subiu enquanto observava a imagem da sua janela cada vez mais longe e as luzes da cidade cada vez mais pequenas. 200 degraus para chegar à Lua, mas conseguira. Empoleirou-se no quarto crescente e observou até não conseguir mais.Ali estava a cidade adormecida... e ouvia-se o som do suspiro de múltiplos sonhos e desejos reprimidos durante o dia. Ali estava a cidade adormecida, desperta e atenta a todos os movimentos do sono. Os seus pés tocavam nas estrelas, que salpicavam o céu escuro, e elas beijavam-nos, dançavam à sua volta, iluminando-lhe mais a imagem lá ao fundo. Observou e sorriu, até os seus olhos lhe pesarem de tanto sono. Então encostou-se à Lua e a Lua abraçou-a e aconchegou-a junto a si. Os olhos de Lua cheia uniram a pálpebras finas e assim dormiram, um pouco despertos, e sonharam na Lua em quarto crescente.

quinta-feira, outubro 13, 2005

Rasto salgado

Sinto uma lágrima presa. Sinto que se franzir um pouco mais a testa, se fechar mais os olhos, se puser a boca ao contrário de um sorriso, ela cai. Eu sei. Ela diz-me que é assim, e que não há outra forma de ficar retida eternamente nas pestanas.
Sinto o seu peso...nela reside todos os meus medos, nela está o peso da tristeza que me quebra. É pesada esta lágrima, mal consigo sustê-la nos olhos, mal consigo ver o que me rodeia, a lágrima cobre-me a retina, torna a minha visão opaca e difusa...mais do que o que sempre foi...
Tenho de fechar os olhos, ela quer correr, quer marcar um caminho para outras correrem, ela necessita de respirar o mundo.
As pestanas chocam umas nas outras. A lágrima fica presa no último fio de uma pestana, mas logo se liberta. Caiu. Rápida e leve.
-“Percebes agora a tua origem, lágrima?”- perguntei baixinho.
Ela nada disse. Correu apenas. Deixou o seu rasto salgado, e esperou no canto da boca, que outras seguissem o caminho.
Silêncio. Espera longa. O segundo em que se processa emoções no interior.
Nenhuma veio, nenhuma a seguiu. Para ali se quedou, esperando em muda resignação, mas nada se mexeu. Uma mão decidiu apanhá-la... com todo o cuidado do mundo, colocou a gota no indicador e apagou o rasto deixado por ela. Fez com que nada tivesse existido...
Levou a lágrima de volta à origem.
Vem fica em mim. Não respires o mundo, respira-me. Consome tristezas cá dentro. Eu espero, não tenho pressa de formar novas lágrimas que te serão fieis seguidoras. Talvez fiques cristalizada no tempo, cristalizada nos olhos...talvez...mas eu não tenho pressa de te perder...

quinta-feira, outubro 06, 2005

Num minuto

Os olhos encontraram-se num minuto. O minuto parecia mover-se devagar. Naquele minuto, as pessoas que se avistavam na rua moviam-se despreocupadamente, tudo se movia em câmara-lenta, sem pressa de chegar ao momento em que os olhos se separavam outra vez e seguiam mais uma vez o seu campo de visão.
Mas, aquele momento ainda não era esse momento. Por enquanto tudo estava concentrado em dois pares de olhos nada mais. Um par de olhos de um verde-água esquálido, e outro par de olhos escuros como o fundo do mar. O choque entre o escuro e o claro, o choque entre uns olhos redondos e uns rasgados. Um choque profundo que derivou num choque surpreso, um tanto envergonhado.
Nenhum dos dois pares de olhos se queria desprender, o olhar foi para além do suportável. Nasceu nos dois pares uma vontade de se unirem, de ficarem colados só a observar, cada pontinho de cada um dos olhos que dava cor. Nasceu nos dois pares de olhos a vontade de beijar a retina, se perder naquele mar de superficie e naquele mar de profundidade. Beijar a pálpebra fina que por segundos apenas quebrava a ligação do olhar. Nasceu nos dois olhos a vontade de tocar , abraçar... Abraçar aqueles olhos que pertenciam a alguém, levá-los consigo para bem longe daquele terminável minuto, fazer com que aquele olhar ficasse congelado, para depois relembrar o calor, a calma e a força sem limites dos olhos... Os olhos encontraram-se num minuto. O minuto moveu-se devagar, mas acabara. O fio quebrou. Os olhos sentiram a partida do olhar, o fim do minuto moroso. Os dois pares de olhos moveram-se lentamente para uma rua de uma cidade coberta de outros olhos. Esqueceram o fio e ligaram-se ao chão. Perderam-se em caras difusas, procuraram outra vez o par de olhos, mas já se tinham movido. O minuto não voltava, o minuto não parava, as pessoas não se moviam lentamente. Num minuto os olhos encontraram-se, numa eternidade tentaram fazer um nó no fio que quebrou...

Nada-nada

3 de Fevereiro, 1981
Estou triste...Estava há bocado a pensar que deveria escrever neste estado de espirito do nada-nada para saber utilizá-lo quando for necessário. Estou realmente no nada-nada à espera que o tudo-tudo venha ao meu encontro. Já vi que, só sendo indiferente, eu me posso "salvar" neste mundo. É o meu mecanismo de defesa. Além do nada-nada, tenho o "virar-me só para mim", bastar-me a mim própria.Venho a descobrir que cada vez me afasto mais das pessoas e não tenho muita certeza de me estar a aproximar de mim.Mas quem diabo sou eu? Eu nem sei quem sou nem que ando a fazer.Ás vezes penso que sou maluca ou que já nasci maluca ou então estou a ficar. Mas eu não me preocupo. Por agora ninguém sabe. E quando desconfiarem eu nunca direi o que penso. Hei-de fingir sempre, para baralhar toda a gente.Durante o dia surgem-me tantas ideias que eu gostaria de fixar!Mas não! A "câmara" continua a filmar e os rolos de filme são guardados nas gavetas da memória para surgirem (serem projectados) quando menos se espera.Estava há bocado a pensar que pensaria que iria escrever "estava a pensar há bocado".As pessoas são loucas. São todas loucas!E as que parecem "normais" são as que fazem mais esforços para fingirem que não são loucas.Eu finjo que sou "normal" e há pessoas que acreditam nisso. Mas eu sou louca. Mas sendo louca sei que finjo ser "normal", enquanto que há pessoas que ao fingirem ser "normais"julgam que não são loucas.Estou triste...acho que o tudo-tudo nunca me irá encontrar...
Escrito por alguém que merecia tudo-tudo