quarta-feira, dezembro 21, 2005

Nuvem de música

Ouve-se ao fundo os leves sons de uma música...ouvem-se as notas arranhar o ar, enquanto se movem lentamente. Olhos fechados, mãos fechadas, e a nuvem de música que se começa a formar, ainda um pouco dispersa à minha volta. Vai-me envolvendo, vai-me sugando outros pensamentos, restando apenas o som...não o som do mundo lá fora, mas o som do mundo da música...desta música.
As notas ganham velocidade, os olhos continuam cerrados, mas a palma da mão passeia-se na nuvem que me envolve, retém-se por momentos em sons e em palavras que ficam, para logo passarem a seguintes. Fecho os dedos...colcheias, semicolcheias...bês, cês, dês...ficam presos por entre os dedos. Encosto a mão no peito, sinto as notas e as palavras entrar pelos poros, como um sopro quente. Guardo-as no meu dentro apertado, que se contrai pela beleza do conjunto , pela beleza da música. Esta nota aqui, esta palavra ali, esta acolá. Fiquem, fiquem mais um pouco...os músculos, as veias e as artérias pedem e prendem-nas mais um pouco...mas elas saiem por onde entraram, e fica apenas um rasto sulcado. Os olhos abrem-se, e as notas saiem, os lábios abrem-se e as palavras saiem...em forma de lágrimas músicais, que dançam enlevadas no rosto pela melodia, em forma de um trautear baixinho que escapa por entre os lábios...elas saiem porque são livres, e a nuvem da música as espera, para as acolher e novo e partir. As notas e as palaras juntam-se, primeiro rapidamente, depois lentamente, até que se separam e a nuvem se evapora...
E tudo recomeça.

Not swallowed in the sea- Coldplay- X & Y

( Quando a música acaba e fica o desejo de mais e mais, e o medo que na próxima vez a nuvem de música não nos encante tanto como das outras vezes...que falte o aperto cá dentro, que nos falte o sentido da música, que falte a lágrima musical...)

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Homem

Era fria e húmida a prisão onde se encontrava o Homem. Grossas barras separavam a humidade do interior da sua cela e a do exterior da sua cela. O Homem dormia naquela cama feita de pedra fria, com o resto de um manto putrefacto que lhe restava para manter a réstia de calor. A cela cheirava àquele cheiro forte a dejectos, a suor fresco, e a suor encrustado na pele...cheirava a Homem. O próprio Homem não se importava com o cheiro, com a humidade, com o frio da cela, era por escolha dele que ali estava, ele próprio construíra a sua própria cela.
Havia uma única janela na cela, uma janela sem grades, onde o sol brilhava, onde o ar entrava limpo trazendo a frescura do dia lá fora, mas o Homem tapara a janela com o seu manto, tapara e confinara-se ainda mais à sua prisão...o sol cegava-o, e o ar limpo já não lhe parecia normal...
Durante o dia, o Homem fazia nada, e nada continuava fazendo até que o a escuridão chegava.
O Homem não se importava, não fazia coisa alguma e vivia esquecido naquele cubiculo, onde ninguém lhe chegava para o apontar, para o contrariar...Apesar de suja a cela não era assim tão má, pensava o Homem, afinal a própria cela tornava-se melhor, porque se tratava da cela do Homem. Ignorante era o Homem, e assim vivia...
Ora Homem...olha à volta, olha à volta do mundo que consideras teu, e diz-me se viverás numa cela, ou se a cela vive em ti próprio...

Fio das palavras...

Fio...mais fio...mais e mais fio...muito mais que mais fio que possa existir. Pensamentos por entre o fio das palavras, pensamentos por dentro e fora do fio das palavras, que é tão pouco...
As palavras soltam-se do que se processa, soltam-se e escorrem pela garganta, soltam-se da garganta e transformam-se em particulas de som que se soltam do ar e se agarram aos meus ouvidos, aos teus ouvidos, aos dele, aos vossos, aos deles...
Mesmo assim...mesmo que as palavras se prendam, o fio parece sempre tão curto, o fio parece sempre tão curto para as palavras, para os pensamentos, que acabam nas entranhas de um algo que está tão dentro que nem parece real, e se acaba por esquecer...
Devolve-me o fio, ou dá-me mais um pouco...sei que já tenho muito mais que o mais, mas os pensamentos querem mais por onde sair, e eu quero mais por onde dizer, por onde pensar, por onde me fazer ouvir...quero mais...
Ver, absorver, sentir, pensar, processar, soltar...mas tão pouco fio...

terça-feira, dezembro 06, 2005

Olha e vê

Olho-te. Olho-te bem dentro e vejo o que tens dentro do que te escondes. Tu olhas mas nem me vês. E eu espero… o mundo também espera que um dia me vejas, que o vejas e te vejas a ti. Mas nada… o mundo continua à espera e tu olhas para tudo, olhas o céu, as nuvens, as pessoas à volta, o mundo à tua volta. Olhas mas és cego por dentro. Quantos queriam os olhos! E tu apenas olhas…
Olhas para ti mesmo e não vês o que eu vejo por dentro do que te escondes. Um coração… tão frágil, que pulsa sangue tão pouco, que não pulsa calor para ti e para o mundo. Continuas a sorrir como se sentisses o coração bater. Mas não sentes… tu olhas mas não vês e és cego e não sabes…
O coração a parar, a parar, cada vez mais, tão lentamente que até dói, tão lentamente que até pára o meu por instantes.
Vejo os teus olhos fechar, vejo os teus lábios fechar, vejo os teus braços e pernas fechar, vejo o teu corpo fechar-se ao mundo… Vejo o teu corpo no chão mas ele não me vê e assim continua, fechado sobre si mesmo, cego mesmo quando morre.
Não me morras! Diz o meu coração mas o teu nem responde… Continua quedo e mudo no chão, com veias que estão vazias e cheias de morte para ti.
Tento fugir do que me prende, do que te prende… Tento atravessar o que te protege e ao mesmo tempo te mata, o que te torna tão fraco… Caio, parto-me em bocados pequenos que tentam chegar a ti, por alguma fresta do teu olhar… Parto-me em vão… Enquanto tu te quebras em dois, caído no chão, de olhar perdido em nada…
Não me morras… dizem as lágrimas… mas tu há muito que partiste…

Livro

Observo os pés pisar o chão, observo os joelhos dobrar, os braços ao longo do corpo, acompanhando o movimento do passo incerto. Piso o chão como quem pisa o que não quer… Olho à volta como quem procura o que quer, o que precisa… Nada à volta anuncia a presença de algo e continuo a pisar com quem não quer e a pensar como quero tanto…
Carrego o meu livro com uma enorme capa vermelha que cobre páginas amarrotadas, páginas lisas, páginas tão presas, páginas soltas e tantas páginas em branco.
Um grande livro, de uma grossura colossal, um peso grandioso… Eu piso o chão e o livro pisa-me a mim… As páginas amarrotadas pesam mais, as lisas, levo-as sem sentir e as páginas presas já tomaram o peso sobre as minhas costas. As restantes… continuam com um peso nulo mas que também pesam e talvez pesem mais que as outras…
Um passo, uma frase, um passo, uma palavra, um passo, dois, três, quatro… um livro…
É o meu livro mas não o controlo. Escreve o que vê, escreve o que nem vê, escreve o que nem sente, nem ouve, nem cheira… escreve o que é e não é, e o que espera que seja…
No fim, pés, o pisar do chão, joelhos dobrados e braços ao longo do corpo que acompanham o movimento do passo, originaram frases… No fim, o chão que piso, o que olho e o que não quero, e quero tanto… originaram frases do meu livro.No fim, mais um que vagueia por ruas, com o peso das páginas que um dia se fizeram e, com a certeza que haverão muitas mais para escrever…