segunda-feira, janeiro 23, 2006

Pedacinhos de trapos ( II Parte)

O resto do dia passou. Ao fim da tarde, a mãe dele chegou da feira de tecidos, e perguntou o que havia acontecido no seu quarto de costura. Linha, tecidos espalhados pelo chão… tudo muito desarrumado e suspeito… ali havia asneira pela certa! Ele encolheu os ombros e foi para o seu quarto. Pegou numa folha branca, em alguns lápis e começou a desenhar o que a memória lhe trouxe… tecidos, linhas, botões e lã, foram aparecendo no papel.
No dia seguinte, quando o relógio marcou as quatro horas da tarde, e o som das badaladas entoou pela sala, ele sentou-se muito direito, com o olhar preso na porta… De novo os pés de tecido apareceram, os cabelos ondularam e os seus olhos voltaram a encontrar os dele. Sentado no chão da salinha de costura, ele ofereceu-lhe o seu desenho, e ela ofereceu-lhe o seu sorriso dançando por entre tecido e costuras. Falaram toda a tarde, de tudo ou quase tudo.
À tardinha, ela despediu-se e ele pediu-lhe para ela voltar novamente. Ela assim fez, voltou no dia seguinte, quando o relógio se preparava para assinalar as quatro horas. Os seus pés escorregaram vindos não se sabe de onde, para mais uma tarde de conversa.
Os dias seguiram-se, assim como as visitas e conversas. Depois de algum tempo passado, ele já nem se lembrava que ela era feita de tecido, porque ela era tão igual a ele. Em algumas conversas eles discutiam as suas ideias, mas no fim, as vozes amenizavam, e os dois aceitavam as ideias um do outro, como dois bons amigos o fazem.
Num dos muitos dias em que ela ia partir, o seu coração ficou apertado. Desejava que o relógio da sala marcasse novamente as quatro horas, para que a bonequita de trapos voltasse e conversassem mais uma vez. Mas não. Quem voltava, dentro em pouco era a sua mãe. Chegava sempre àquela hora, de tirar as medidas a uma cliente para um vestido, ou de comprar linhas e tecidos.
Nessa noite, ele sonhou com a boneca de trapos, sentada na salinha de costura, conversando para sempre com ele. Então, compreendeu o que lhe dizia o pensamento e os sonhos.
No dia seguinte, ao bater das quatro horas, ela apareceu, e pareceu-lhe ainda mais bonita. Nesse dia, a conversa não começou… o ar estava carregado de silêncio. Por cima da cabeça dele, apareciam balões de pensamentos cheios de palavras desorganizadas, que ele apagava com um abanar de cabeça… negando tudo, negando-se.
- O que se passa? - perguntou a sua voz dela.
- Nada… - disse ele mentindo. Mas quando disse isto, a voz faltou-lhe, e a resposta pareceu-lhe tão clara. Tudo se passava, tudo…
- Não me parece que assim seja. - disse ela sentando-se ao seu lado, chegando o seu corpo de pano, para o corpo dele.
- Bem… - começou ele - algo de estranho se passa… - disse ele por fim.
- Como assim? - perguntou ela, sem perceber.
- Ora… bom… eu…
Embrulhou as palavras na língua. Não dizia nada com sentido, mas por fim, decidiu-se.
- Eu… gosto de ti… - sussurrou.
A bonequita aproximou-se dele e disse baixinho:
- Eu também…
Pousou uma mão de pano na dele, e outra no seu cabelo encaracolado. E depois continuou:
- E isso é estranho porquê?
As leves meiguices acalmaram-no e então pôde falar com clareza.
- É estranho, porque és uma boneca de trapos, supostamente não és real…
As festas pararam, a mão dela separou-se da sua, e ouviu uma voz fraca responder:
- Pensei que tínhamos discutido isso… que importa se sou uma boneca de trapos? Se supostamente sou irreal? Também tu podes ser um boneco de trapos… também tu recolhes pedacinhos do que encontras… um bocadinho de amor, um bocadinho de amizade, um bocadinho de alegria…assim como eu recolho bocadinhos de tecido. Podemos sempre achar semelhanças entre todos nós, e aceitar as nossas diferenças, pelas nossas semelhanças. Somos iguais… o meu aspecto pode ser diferente, mas somos iguais. Agora que colhi um bocadinho do teu amor, fico triste, se o tornar a colocar onde o achei…
As pálpebras de tecido fecharam-se, largando pedacinhos de tecido transparente…
Ele reflectiu nas suas palavras, limpou-lhe as lágrimas de tecido e manteve o silêncio por algum tempo.
- Também eu te aceitei. - disse ela.
Ele pegou na mão de pano, puxou-a, levantou-a. Abriu a porta da salinha de costura, e partiram… Partiram para o sitio onde as diferenças não existem, para o sitio onde todos aceitam todos por igual…

4 comentários:

Anónimo disse...

"Também tu podes ser um boneco de trapos… também tu recolhes pedacinhos do que encontras… um bocadinho de amor, um bocadinho de amizade, um bocadinho de alegria…assim como eu recolho bocadinhos de tecido." Aqui está uma afirmação verdadeira! Eu também me sinto uma boneca de trapos. Ando pelo mundo recolhendo pedacinhos do que me faz falta para preencher um pouco o vazio do meu coração... História bizarra mas muito linda. Metáfora da vida...

D. disse...

foram os dois para a terra dos sonhos e amaram-se para semrpe, livres de planos inventados e de invejas alheias... e assim foram vivendo felizes e de mão sobre mão... de lágrimas dentro e corações com batidas fortes... amor...

Sara Morgado disse...

"Na Terra dos Sonhos podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal. Na Terra dos Sonhos toda a gente trata a gente toda por igual. Na Terra dos Sonhos não há pó nas entrelinhas, ninguém se pode enganar. Abre bem os olhos, escuta bem o coração se é que queres ir para lá morar."

Sei que já escrevi esta letra do nosso Palma em vários comentários. Mas não me canso de cantar, gritar e sentir estas palavras (já pus a música a tocar).
Somos diferentes sim, somos diferentes e ainda bem. É bom ser diferente e ser igual em tudo e tornar o mundo mais rico com esses diferentes corações tão fáceis de amar.
Mas somos iguais. Somos iguais em tanto que passa ao lado, em tanto que é tudo, mesmo sendo tão pequeno. Somos mais iguais do que aqueles que pensam ser iguais. Esses são iguais porque vivem sempre sobre as mesmas malhas e ciúmes e traições e ódio e invejas e facadas.
Mas eles não percebem. Deveriamos ser iguais no dentro, no que mais de puro existe.

Anónimo disse...

so tenho isto a dizer..incrivel!..