segunda-feira, janeiro 23, 2006

Pedacinhos de trapos ( I Parte)

O relógio da sala anunciava as quatro horas. O seu pêndulo brilhante produzia um sonoro tique - taque, mas para nada o acordava. Uma profunda sonolência tinha-se instalado no seu corpo, começando primeiro pelos olhos, causando-lhe um peso profundo, e depois alastrando-se pelos braços, pelas pernas, pelo tronco… Deixou-se cair no sofá, e ali ficara. A sonolência era tamanha, que nem ouviu o leve tocar dos pés feitos do mais belo tecido azul… nem ouviu o leve roçar de braços feitos do mais fino algodão e cobertos por um tecido bege grosso… nem ouviu o leve ondular dos cabelos castanhos feitos da mais resistente lã… nem ouviu o leve olhar que o percorria, feito com os mais engraçados botões. Pé ante pé, os olhitos percorriam a sala, com uma nuvem pairando, num misto de curiosidade e interesse que tocavam os cabelitos de lã.
De repente, a sonolência abandonou o corpo dele, e lentamente ele começou a ouvir os passos, o roçar de braços, o ondular de cabelos… e sentiu um olhar pousado na sua direcção. Abriu os olhos cautelosamente, e… encontrou dois botõezinhos muito azuis a olhar fixamente nos seus olhos. Voltou a fechar os olhos, abriu, pestanejou repetidamente. Esfregou os olhos, e abriu-os de novo… Uma bonequita de trapos apareceu no seu campo de visão, uma bonequita de trapos com um vestido feito de vários tecidos multicolores, boca feita de tecido, nariz feito de tecido, olhos de botões, cabelo de lã envolto numa enorme rodilha de tecido, formando um chapéu. Ergueu-se lentamente, fitou-a durante um pouco, e sentou-se no chão desamparado.
Levantou-se um silêncio, seguido de várias interrogações.
- Quem és? - começou ele, levantando o sobrolho.
- Sou uma boneca de trapos… - ouviu-se uma voz macia, como o próprio tecido de que era feita. A voz amaciou o ar e desvaneceu-se.
Pensando que os seus olhos o atraiçoavam, e a sua imaginação se estendia um pouco mais que o habitual, levantou-se, sorriu para consigo mesmo, e foi à cozinha beber um pouco de água. Mas logo sentiu dois pezitos seguirem os seus, e voltou-se encarando a estranha figura.
-Ora, será que não és capaz de acreditar em mim e aceitar-me? - resmungou ela - Começo a ficar um pouco aborrecida de andar atrás de ti por toda a casa.
Sim, de facto já a vira algumas vezes no quarto de costura da sua mãe, mas pensou que… nem sabia o que havia pensado… às vezes as sombras enganavam… Mas aquela voz parecia-lhe demasiado cansada e triste, e por isso resolveu aceitar a sua visão…
- Mas afinal, o que fazes em minha casa? - perguntou ele indignado.
- Bem… o tecido das minhas pernas descoseu-se e o meu vestido rasgou-se. Então soube que a tua mãe era costureira, e depois de encontrar o seu quarto de costura consegui coser-me… - o seu rápido discurso foi interrompido por ele.
- Mas afinal, quem és tu? De onde vieste? O que tenho eu a ver com as pernas e vestido descosidos? Porque não te costuraste e te foste embora? Porque falas tu comigo? Porque teimam os meus olhos em ver coisas que não são reais?
- Ora bem… eu sou uma boneca de trapos, de onde vim não importa, tens a ver com o meu “ descosimento”, porque a tua mãe é costureira, não me fui embora porque ainda tenho umas coisas a tratar, e falo contigo, porque te acho um ser curioso, e os teus olhos não te enganam… porque teimas tu, em te fechar no teu mundo feito de realidade? Porque não deixas a tua mente explorar o improvável? - mais uma vez o discurso rápido alargou-se no ar, e o tom doce e ao mesmo tempo autoritário e decidido, convenceu-o. Aceitaria falar com uma boneca de trapos…iria ceder à sua própria loucura…Mas havia de facto uma pontinha de curiosidade e simpatia por aquela bonequita tão engraçada. Cedeu-lhe o quarto de costura da mãe para terminar o seu arranjo, e deitou-se a observar. As hábeis mãos de pano costuravam o vestido, colocando aqui e além, mais um toque de graça. Ela reparou que ele a observava, e lançou-lhe um aberto sorriso, mostrando os seus dentes feitos de um tecido muito branco.
- Então sempre acreditas nos teus olhos? - disse ela cortando a linha com as mãos.
- Tento acreditar…
- Porque é tão difícil aceitar que…
- É difícil aceitar, porque nunca vi nada igual…
- O medo da diferença, o medo, sempre o medo… eu posso ser diferente de ti em alguns aspectos, mas no fundo, sou igual, ando, falo, penso, sinto…
Os ouvidos de pano esperaram uma resposta mas não a obtiveram. Ele ficou mudo, o ar silencioso, e a boneca sentou-se no chão mesmo ao lado dele…
- Obrigada pelas linhas e tecidos…vou-me embora…
- Espera… - disse ele - não vás ainda… ou melhor… podes voltar amanhã para falarmos um pouco mais?
Ele próprio se surpreendeu com as suas próprias palavras. Ela sorriu, mostrando novamente os dentes brancos de pano, e ele quase jurou ter visto um brilhozinho nos olhinhos-botões.
- Se assim o queres, eu volto… Gostarei de falar contigo mais uma vez.

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